terça-feira, 30 de novembro de 2010

Feito manhãs

Nem preciso falar das idiossincrasias que dissemos certo tempo memorial. Tenho horror a detalhes, mesmo sabendo que estes dizem muitíssimo sobre nossos reais sentimentos. Mas sinto, como necessidade vital, o desejo de viver a intensidade dos atuais acontecimentos.
Hoje, minha visão encontra-se voltada para as alegrias presentes e viver essa etapa me possibilita a compreensão do que essencialmente sou. Não careço de informações adicionais sobre o que fazes com seu tempo e com suas escolhas, preciso é me abster do passado e do futuro. O presente me enriquece de verdades totalmente não absolutas. Sou incerta como as manhãs.
Se a vivência não nos legou continuidades é porque estancou o seu curso. Ou porque a hora determinada pelo destino já chegou.
Sejamos justos conosco e honestos com o universo. Fechemos, portanto, a porta para descansar. Amanhã, os pássaros cantarão novamente, mesmo que o sol ainda esteja adormecido. Não desperte o sol até que ele acorde por si e auroras, manhãs, gotas de chuva, miados de gatos e frutos da algaroba resolvam saudar as luzes inconstantes do novo dia nesse árido chão seridoense.

Maria Maria

sábado, 2 de outubro de 2010

Chuvas: Bom ou mal tempo?

 
Quando éramos crianças, brincávamos de poças de chuvas, de açudes construídos com nossas mãos pueris, com jogos de pedrinhas certeiras nas águas que desciam dos olhos de Deus.
 Época em que as chuvas eram definidas pelos meses. Se não me engano, fevereiro (mês das frutas doces), março e abril. Os meses que se seguiam eram de frio intenso até agosto que já se preparava para a “nossa” primavera. Era uma primavera tão possessiva porque Bom-dia e Boa-noite nos saudavam todos os dias pelos terreiros da pacata cidade e por isso, era absolutamente “nossa”, sem analogia a países europeus.
Interessante! Tudo tinha gosto de alegria quando a chuva chegava à região do Seridó. O que era de vida se enfeitava e as tardes familiares, os banhos de chuva nas biqueiras das lojas na Praça Tomaz Salustino e ruas do centro de Currais Novos representavam momentos singulares a todos e a cada um de acordo com a sua perspectiva.
Ao longo dos anos, percebo que o tempo se configura de forma diferente. O nosso bom tempo é aquele em que as nuvens cúmulos-nimbos se engravidam para derramar sobre nós as bênçãos dos céus, ao contrário de outras regiões, onde esse tempo de chuvas é considerado mau tempo. Enfim, a chuva no Sertão seridoense é a esperança de um povo vigoroso.
"O sertanejo é antes de tudo um forte". Citação de Euclides da Cunha em seu famoso livro "Os Sertões. A verdade é que a fortaleza desse homem do campo não se encontra apenas na força física, mas na religiosidade, na fé em São José e em Sant`Ana e na resiliência, termo que a psicologia tomou emprestado da física, definindo-a como a capacidade do indivíduo lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse, etc.
Apesar do aquecimento global, do efeito estufa e das ações antropogênicas (provocadas pelo homem), além de outros fatores que vêm causando ruínas e alterações no eixo da terra e em toda a sua extremidade, sentimos a dor daqueles que perderam as famílias em terremotos, em cidades próximas a vulcões em erupção. Mesmo assim, a chuva é fundamental para a produção de alimentos que beneficiarão tanto o homem do campo quanto o da cidade, a flora e a fauna sertanejas.
O tempo e as suas transformações climáticas não trarão as mesmas sinestesias: o cheiro, o som, a voz e visão daquelas tardes de chuva, porque como disse Heráclito de Éfeso "Um homem não entra duas vezes no mesmo rio. Da segunda vez não é o mesmo homem nem o mesmo rio". É claro que as emoções não se repetem, elas chegam de modos diferentes, nós as sentimos com um olhar novo, com um coração esperançoso de que o inverno nos trará sempre as boas novas, nos trará abundância e fartura na mesa do nosso povo.
E assim, caminhando por esse século de tecnologia avançada, de velocidade, de inovações agrícolas, de descobertas científicas e de questionamentos, o povo que ama a sua terra espera, ansioso, por um era de boa-venturança, de alegrias, paz e fertilidade no chão dos índios cariris.
 
 
Por Maria Maria
Escritora e Poeta
 

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sentimentos de Amarílis

Há uma fragilidade voando feito folha seca pelo ar. Se há primavera, eu não sei. Sei apenas que estou mudando de pele como cobras sibilantes, embora tenha medo de cobras. É assim que me sinto nesse tempo de flor escondida ou flor que não desabrochou ou ainda, flor que espera seu tempo. Há anos não me apaixono por alguém, nem sinto o fogo, o desejo, o entusiasmo pelo outro. Nunca mais beijei uma boca de beijo bom. Isso me deixa diferente do que sou e penso que não estou mais anfitriã de mim mesma. Minha casa, meu porto seguro matinal, só ouve as minhas falas e meus questionamentos. Não sei em qual dimensão me encontro agora. No calendário real estou vivendo em fins de setembro deste século vinte e um, porém no meu universo paralelo e atemporal vivo indefinida como a dor de estar só. Pareço-me a folha de uma árvore asiática que vem cruzando ventos e cortando brisas para este continente tão americanamente fugaz. O que me acalma e me mantém sóbria é o cheiro de algaroba quando o redemoinho atravessa meu quintal e deixa todo telhado em cio de gata ou logo que a manhã nasce seridoana com seu aroma sertanejo de gado berrando. Enfim, mantenho-me à espera de um tempo acigânico onde eu possa envelhecer soberana e feliz.

Maria Maria

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Calendário

Não sei quando nasci, não me importam as vias do calendário cristão. Sei apenas que vivo submergida entre meu acerto final de contas comigo mesma e a premissa de que horas vivas ou mortas estejam à porta de um círculo que se esconde entre os demais. Sou medieval, confesso, e uso alquimias de fundo de cozinha. Vejo, contudo, nessas maquinarias do século vigente, a possibilidade de abrir janelas, deixando às venezianas um pouco do meu sussurro. Não quero engravidar possíveis solidões. Quero a lucidez desse dia em vislumbre. Quero estar saciada de amor à margem da ilusão.

Maria maria

domingo, 15 de agosto de 2010

A DIALÉTICA DO TEMPO

O tempo é dialético. Nós é que pensamos em torná-lo estático, imóvel e, nunca, efêmero. Desejamos retardá-lo como se assim o fosse; um retardado, um tolo, um não sei quê estabilizado.
Usamos cosméticos, achando que, só assim, impediremos de passar. Compramos adornos e nos enfiamos em clínicas especializadas em rejuvenescimento físico. Gastamos o pouco que temos em pomadas, géis, cremes e uma parafernália de fórmulas químicas como se fôssemos alquimistas da juventude desenfreada.
O mundo gira em torno de nós, mas não paramos de girar em torno dele no sentido oposto; ou talvez o fazemos, quando ludibriamos a mente na esperança de não envelhecer.
Acabamos sendo companhia indesejável de nós mesmos, por não acompanharmos o ritmo do tempo. E somos mentirosos. Mentimos a nossa idade, a dos outros e mentimos, principalmente, para nós mesmos.
Enquanto o mundo gira há em nós, no calabouço final do porão, a preocupação com a estética da alma. Esta, por sua vez, permanece fora do contexto (corpo e alma) e desaparece da unidade como se os dois elementos fossem dissociados.
O certo é que o inevitável acontece; a morte existe. Ninguém permanece jovem para sempre. Porém a eternidade é como um rio perene, jamais mata o espírito, pois o seu sentido é a existência infinita.

Maria Maria

domingo, 8 de agosto de 2010

Tentativas

Minhas tentativas frustradas de escritora me fazem acreditar que todo o dia é dia de palavra, menos os domingos, com toda a sua prepotência e arrogância de ser singular. Mas o fato é que hoje me sinto carrasca ou algoz de meus pensamentos desvairados.
Sento aqui, nessa cadeira vermelha (nem é minha cor preferida), e entro no século XXI acessando uma máquina portátil que esquenta meus dedos e engole minhas palavras. Fico mesmo sem saber o que dizer o ou escrever diante desse cinza que cobre minhas primeiras imagens transformadas em primaveras.
Minhas primeiras ideias outonais se configuram em pintassilgos e pardais, mesmo não entendendo bem de pássaros, talvez de asas, eu entenda um pouco. Tenho certo caminhar ao longo da minha vida de 43 e pegadas formam os caminhos que se transformam em experiências alquímicas de uma seridoense da gema da scheelita.

Maria Maria

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Aurora boreal

Eu tive um tempo. Um tempo “vazio”. Não havia promessas, nem expectativas, nem sonho. Talvez poesia. Sim, poesia havia. E lembro, com certa nitidez, de um vento. Não sei bem dele, se era vento norte, sul ou estrangeiro, porém era um vento docemente sensato comigo.
Naquela época eu enfrentava leões, dragões, serpentes ou o que viesse à minha frente. Talvez fosse mais inocente e não pensasse nas conseqüências dos fatos.
Esse tempo tão livre e meu era propriedade privada e lá eu abria janelas, fechava portões, guardava as torres como a proteger-me.
Eu era muito feliz naquela estação temporal e tinha caneta, papel e imaginação.
Não cuidava do jantar e nem esperava o marido. As companhias inseparáveis e mel eram minhas asas. Sim, as asas me levavam ao relógio de Londres, aos Moinhos Holandeses e as Cataratas do Iguaçu.
Eram momentos dourados porque eu tinha 18 anos e esses eram tempos de ouro, de aurora boreal.

Maria Maria

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Entre um fonema e outro

Há um pouco de mim em cada palavra sua, em cada gesto que sua boca faz, em cada espanto ou feição desiludida. Eu sinto quando me olha meio estranho, parece que mora um sertão em sua dor de morte eterna. Ou um solitário pardal se pousa inteiro sobre seus ombros.
Não me precisa a solidão! Há muitos outros corações em fragmentos e mais um, não acrescentaria nada à função de criar mais vazios. Os vazios já nos circundam todos os dias e nos ocupam os vácuos que o trabalho, às vezes, preenche.
Se suas mãos querem fechar-se em concha nessa lacuna que Eva nos legou então nos resta o riso e a dor para ser pérola.
Os açudes dançam a colheita futura e eu me festejo com flores mornas. Eu me celebro como os ramos de jurema que se deitam sobre as águas.
O texto é o espelho. O Narciso, as palavras. O que posso mais querer?

Maria Maria

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Agulhas

`naquele oceano
de palavras,
quis aportar em ti.`

Às vezes o mar suplanta a dor, sem mais, nos perdemos num vazio de águas. Quem sabe a praia em que repouso, depois de tanto nadar, abrace-me como a acariciar os sentimentos cujos reflexos d’alma são retratados por palavras, num velho diário de bordo? Quem sabe se me escrevo nas rochas, ou ainda, quem sabe não sou a própria rocha, que recebe as pancadas desse oceano desigual? Sabe-se lá se não sou o cacto que armazena a chuva a fim de, na seca, suportar a sede? Talvez eu seja algo de inalcançável a mim mesma. Ou, serei a ausência de silêncio?
Com essas analogias, retiro-me dos escombros e ressurjo majestosa no centro de uma selva de pedra ou mesmo na esfera de um cascalho interiorano, às margens vazias e pardacentas do “adormecido” rio Seridó. Se possível, desperto esse rio que dorme em mim e abundo em solo pátrio, levantando a poeira qual Saci, dos contos de “enganamentos” infantis.
Há certas horas que as almas sertanejas ecoam o cântico da solidão-presente, numa solitude apregoada de reminiscências. Renascem as almas bem no cume da dor, no ápice da saudade-angústia.
Pensei, dias outros, tão miúdos e amiúde, que aportar em ti seria a chegada, o ponto cheio da agulha que sibila no retalho de chita. Seria a conclusão do esboço, a tessitura, a forma... porém, nem todos os oceanos são navegáveis e o mar, salinizado e sem dó, massacra o amor. Porém, nem toda fissura da trama do tecido, tem a agulha que merece, visto que a ponta que penetra o algodão do meu pano de saco é, deveras, aguda e, ao contrário da lâmina que parte os lírios, perfura-me como a se cravar inteira no meu oceano de inquietude.
Mas, a escuridão noturna, companheira das sombras, perde-se entre as efemérides. O sol dá o seu ar de bem-vindo e, embora descanse ao fim da tarde, volta na manhã do novo dia, num ciclo de paciência solar e não me permite que ‘naquele oceano de palavras, eu aporte em ti’.


Maria Maria

sábado, 24 de julho de 2010

CAIXINHA DE LINHA

Tudo naquele tempo, naquela infância tinha gosto de frutas doces. As tardes, calorosas, sob um sol escaldante, excitavam o paladar ao sabor de um copo de ponche de limão. Nesta ocasião, frutas ácidas.
Lembro-me das aulas vespertinas e de lanches deliciosos preparados pela mamãe. Além da lancheira, (de lata com belos motivos infantis), carregávamos uma bolsa com cadernos pautados e milimetrados, específicos para as aulas de Matemática.
Os sete filhos dos meus pais lhes provocavam, naturalmente, uma certa despesa de material escolar e esta necessitava de uma redução, usando a criatividade. Morávamos no interior do Seridó e as dificuldades eram muitas, naquela época.
Meu pai era trabalhador autônomo e no período da estiagem, a principal preocupação era os alimentos que vinham em sacos de algodão de outros estados para serem distribuídos entre as famílias mais carentes. Não aparecia trabalho e nem renda. Foi um tempo de adversidades, de contratempos e de contrapontos, mas também de invencionice, maquinação e imaginação.
Os estojos não eram tão coloridos, adornados ou plastificados como os de hoje. Eram confeccionados por cada um de nós.
Meu pai trazia da bodega de Seu João caixas vazias de linhas de costurar e nós colávamos suas laterais e as cobríamos com tecido ou papel para embrulhar presentes. Além desse utilizávamos o famoso papel de embrulho para servir como forro, pois pregávamos sobre ele fotos de artistas de novelas, de revistas em quadrinhos ou de propagandas. A televisão ainda não fazia parte “como membro da família” em todas as casas, porque era um eletrodoméstico destinado às classes mais favorecidas. Hoje esse meio de comunicação é quase uma pessoa, pois a partir do momento em que o aparelho começa a funcionar, a atenção é voltada, exclusivamente para ele. É o momento de êxtase total, de egocentrismo (da televisão,é claro!).
Cada estojo daquele produzido com carinho e amor era sempre o melhor! Acontecia uma espécie de Superação e, ao mesmo tempo, de Conquista. Nós sentíamos uma necessidade de competir sem a selvageria dos tempos modernos, cuja busca por um lugar no pódio nos remete a um canibalismo inconsciente.
Tão bons ficavam eles que todos da escola queriam imitá-los nos mínimos detalhes. Que saudade eu sinto daquelas caixinhas emparelhadas, coladas nas extremidades com goma arábica e que guardavam lápis, borracha, régua, caneta, sentimentos, subjetividades... Guardavam momentos especiais e amigos do mesmo quilate, bem como os pingos das gotas fugidias, de dias de chuva que, esporadicamente, chegavam e molhavam o seu interior e era aí, nesse meio tom, na mesma caixinha de linha que morava, secretamente, a nossa alma úmida de infância.

Maria Maria