sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Asa


Não sei se quero falar da perda da minha asa, da plumagem que dourava no sol e do brilho que resplandecia toda manhã.
Eu vi o sertão acordar em mim, logo que o amarelo-canário apontava no horizonte e vi minhas nuances alçarem vôo num desespero sem fim. Senti meus músculos tremerem no canto oblíquo da boca e uma pequena cachoeira se formando na esquina dos meus olhos.
Tudo vi, mas recuei o choro e bloqueei a palavra.
A dor vinha rasgando a estrada como faz uma acauã quando voa rasante pelos caminhos de pedra e volta furando, bicando, abrindo fendas...
Às vezes, há solidões merecidas! E há aquelas que se instalam estrangeiras e fixam moradia por tempo indeterminado. Pior ainda, são as que carregam sob o braço um pergaminho, contendo os itens a serem observados naquela nova estadia atemporal.
Mas o tempo não é conivente com a solidão. Ele é nômade e livre. Por isso, e em respeito ao meu coração que pulsa cantando, acabei de tomar uma decisão:
Já está na hora de querer a minha asa de volta!

 Maria Maria Gomes

terça-feira, 18 de setembro de 2012

UM ENCONTRO NA REDE



No meio da tarde, quando o efeito tyndall adentrava a lateral da minha sala de estar, pus em prática o meu costumeiro jeito índio de sentar-me diante do computador.
            Acionei os botões que o colocava em funcionamento, enquadrei a cadeira no assoalho, entre um mosaico e outro, e dispus as nádegas numa cômoda posição, de forma, eu diria, erótica.
            Esperei, tranqüilamente, as janelas cibernéticas se descortinarem a minha frente, enquanto um simpático programa de comunicação instantânea saudava-me com um “oi!”. Respondi , de imediato, aquele apelo de praxe e retruquei um outro “oi?” desconcertado e interrogativo, por não reconhecer o endereço eletrônico de quem “navegava” do outro lado.
            Encetamos o diálogo simbólico com assuntos incomuns (para mim), pois o digitador com quem falava tecia comentários sobre armas nucleares. E esta não era uma boa deixa para principiar um diálogo informal, em se tratando de rede de comunicação virtual cujo propósito é estimular a busca por novos amigos.
            O assunto fluiu diferente, logo que comentei, sem nenhuma intenção, que o calor do Nordeste chegava a quase 40 graus. O homem, sem identidade definida, perguntou-me o que eu fazia para resistir à alta temperatura da região. E, sem pestanejar, pois considero a nudez natural, respondi: “se o tempo se faz quente, tiro a roupa, viro índia”. Ele riu da situação com os símbolos: “rsrsrsrsrsrsrs” e arriscou um bom comentário: “você deve se sentir livre sem roupa, não é?”
            Não me importando e até considerando interessante a temática, incitei a conversa, dizendo que as peças que me cobriam, naquele momento, se espalhavam pelo tapete, poltrona ou chão. Ele, surpreso, com a resposta, escreveu um “nossa!!!!” carregado de exclamações como a me dizer que tomara um choque, no bom sentido, é claro!
            No meio da comunicação, ele foi me provocando com expressões pouco sutis e eu, que não vejo maldade em certas coisas, e adorando a libidinagem verbal, retribuí com frases picantes.
            De repente, minhas partes íntimas começavam a molhar-se a cada palavra obscena digitada naquela máquina pálida que, diante de mim, figurava a idéia de realidade. Perguntei-lhe o nome; Eros, respondeu. E o seu? Helena. Não a de Tróia, naturalmente. O diálogo febril esfriou um pouco nesse momento de apresentação informal, contudo não apagou o fogo que crepitava nas vias cibernéticas, pois o outro me dizia que seu pênis queria saltar da calça e que precisava disfarçar.
            A conversa digitalizada ganhava de presente inúmeras reticências. Parei por alguns instantes para prender os cabelos, pois os fios, já úmidos do calor destas estâncias seridoenses, se misturavam no meu pescoço, causando um certo incômodo. Então eu os amarrei num gesto quase sensual e ao mesmo tempo mecânico.
            O cavalheiro, de pseudônimo Eros, confessou-me estar num local inapropriado para aquela atividade de cunho ou “punho” sexual, pois havia outros navegadores por ali e, portanto, seria uma indelicadeza de sua parte sair do ambiente, com o pênis ereto, mas que se deslocaria ao banheiro e logo retornaria à conversa.
            Enquanto ele se organizava, eu tecia a seguinte cena:
            “Ele entrou no banheiro, abriu o zíper e me imaginou índia. Talvez uma daquelas de cabelos negros-azulados e de peitos redondos, sem pêlos e olhos expressivamente ambíguos”.
Pensei ainda que a imagem construída de mim ganhara um arquivo na pasta ‘meus documentos’cujo título seria: ‘top secret’. Ou, na pior das hipóteses, vamos para o ‘lixo eletrônico’.
            Ele voltou. Desta vez tácito como se sentisse um certo alívio. Dirigiu-se a mim, dizendo; “olá, querida”, justamente na hora em que uma pane nas conexões apagou a minha resposta. E eu, meu caro leitor, fiquei entre o silêncio e a vontade de falar. A ligação não foi restabelecida, o sinal resolveu ocultar-se nas esferas celestiais e, enquanto o sistema voltava, meu marido chegou. Sem que ele percebesse, fui ao banheiro e me vesti. Tudo acabou em segundos, da mesma forma como começou, porém, ainda há um dado importante: meu marido resolveu tomar banho e eu o ajudei a esponjar as costas. Nessa brincadeira “infantil” dançamos em volta da fogueira, naquele espaço estreito tornando-nos índios verdadeiros.

Maria Maria Gomes

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Convite

Olá, amigos! Eis mais um livro de poemas: O Beijo de Eros. Sintam-se todos convidados!

domingo, 22 de janeiro de 2012

Mensagens do tempo que chove

O tempo é mensageiro. Traz notícias amareladas, adormecidas, cansadas de permanecerem silentes na memória desgastada da humanidade. Recordo-me das noites de chuva no Seridó, lugar de calor e sol, mas também de brisas noturnas extasiadas de prazer. Recordo-me das noites em trovoadas, desabastecidas de quietude, todavia abundando aconchego familiar. Essas lembranças chegaram-me envoltas em um lençol de retalhos disfarçado em pergaminho classicista e se desenrolaram sobre meu corpo de mulher seridoense. Lembro-me, especialmente, das noites de prazer duo: a chuva e a falta de energia elétrica que se dava ao primeiro lumiar de relâmpago no topo da Serra da Acauã. Estranho pensar nessa ultima referência como algo prazeroso, porém totalmente explicável. Quando não há luz artificial, a luz interior ilumina o ambiente. É nesse momento que as famílias do Seridó se reúnem para o brinde à chuva e sorriem, agradecendo o milagre da vida que chega. Após a ceia, olhávamos atentamente para o telhado assimétrico de juremas e telhas cozinhadas pelas mãos dos homens da terra, enquanto a chuva entoava sonatas noite adentro. A imagem chega tão nítida, real e consistente que chego a pensar na hipótese de estar numa “máquina do tempo” construída pela imaginação poética de Dom Quixote. Bastam as minhas conjecturas e analogias meio ilógicas, no entanto, plausível ao olhar de quem se embevece com a chuva que cai nessas terras de ventanias e resedás. Vejo, na cozinha da casa onde fui menina, uma tigela de sopa fresca, pão com manteiga e café sobre a mesa, forrada com uma plástica toalha com motivos frutais. Em volta da mesa, sentados em um banco longo e cru, meus pais e irmãos, feito índios cariris realizando a dança da chuva, comemoravam o que havia de vir. As minhas memórias me levaram há um tempo em que estar junto significava satisfação e solidariedade. Um tempo em que se pedia a bênção aos pais sem se sentir constrangido. Um tempo em que respeitar os mais velhos não era uma obrigação determinada pela lei de direitos humanos, mas um respeito natural pelo outro, um valor transmitido pelos pais. Nessa tarde janeiriana, onde pardais compõem seus mais dissonantes acordes, flores renascem aos primeiros pingos de chuva e nuvens engravidadas se amontoam para a luz em forma de água, recebo essa imagem autêntica via tempo mensageiro que a mim chega em forma de cheiro, frio e saudade.
Crédito da foto e texto: Maria Maria