sexta-feira, 30 de julho de 2010

Entre um fonema e outro

Há um pouco de mim em cada palavra sua, em cada gesto que sua boca faz, em cada espanto ou feição desiludida. Eu sinto quando me olha meio estranho, parece que mora um sertão em sua dor de morte eterna. Ou um solitário pardal se pousa inteiro sobre seus ombros.
Não me precisa a solidão! Há muitos outros corações em fragmentos e mais um, não acrescentaria nada à função de criar mais vazios. Os vazios já nos circundam todos os dias e nos ocupam os vácuos que o trabalho, às vezes, preenche.
Se suas mãos querem fechar-se em concha nessa lacuna que Eva nos legou então nos resta o riso e a dor para ser pérola.
Os açudes dançam a colheita futura e eu me festejo com flores mornas. Eu me celebro como os ramos de jurema que se deitam sobre as águas.
O texto é o espelho. O Narciso, as palavras. O que posso mais querer?

Maria Maria

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Agulhas

`naquele oceano
de palavras,
quis aportar em ti.`

Às vezes o mar suplanta a dor, sem mais, nos perdemos num vazio de águas. Quem sabe a praia em que repouso, depois de tanto nadar, abrace-me como a acariciar os sentimentos cujos reflexos d’alma são retratados por palavras, num velho diário de bordo? Quem sabe se me escrevo nas rochas, ou ainda, quem sabe não sou a própria rocha, que recebe as pancadas desse oceano desigual? Sabe-se lá se não sou o cacto que armazena a chuva a fim de, na seca, suportar a sede? Talvez eu seja algo de inalcançável a mim mesma. Ou, serei a ausência de silêncio?
Com essas analogias, retiro-me dos escombros e ressurjo majestosa no centro de uma selva de pedra ou mesmo na esfera de um cascalho interiorano, às margens vazias e pardacentas do “adormecido” rio Seridó. Se possível, desperto esse rio que dorme em mim e abundo em solo pátrio, levantando a poeira qual Saci, dos contos de “enganamentos” infantis.
Há certas horas que as almas sertanejas ecoam o cântico da solidão-presente, numa solitude apregoada de reminiscências. Renascem as almas bem no cume da dor, no ápice da saudade-angústia.
Pensei, dias outros, tão miúdos e amiúde, que aportar em ti seria a chegada, o ponto cheio da agulha que sibila no retalho de chita. Seria a conclusão do esboço, a tessitura, a forma... porém, nem todos os oceanos são navegáveis e o mar, salinizado e sem dó, massacra o amor. Porém, nem toda fissura da trama do tecido, tem a agulha que merece, visto que a ponta que penetra o algodão do meu pano de saco é, deveras, aguda e, ao contrário da lâmina que parte os lírios, perfura-me como a se cravar inteira no meu oceano de inquietude.
Mas, a escuridão noturna, companheira das sombras, perde-se entre as efemérides. O sol dá o seu ar de bem-vindo e, embora descanse ao fim da tarde, volta na manhã do novo dia, num ciclo de paciência solar e não me permite que ‘naquele oceano de palavras, eu aporte em ti’.


Maria Maria

sábado, 24 de julho de 2010

CAIXINHA DE LINHA

Tudo naquele tempo, naquela infância tinha gosto de frutas doces. As tardes, calorosas, sob um sol escaldante, excitavam o paladar ao sabor de um copo de ponche de limão. Nesta ocasião, frutas ácidas.
Lembro-me das aulas vespertinas e de lanches deliciosos preparados pela mamãe. Além da lancheira, (de lata com belos motivos infantis), carregávamos uma bolsa com cadernos pautados e milimetrados, específicos para as aulas de Matemática.
Os sete filhos dos meus pais lhes provocavam, naturalmente, uma certa despesa de material escolar e esta necessitava de uma redução, usando a criatividade. Morávamos no interior do Seridó e as dificuldades eram muitas, naquela época.
Meu pai era trabalhador autônomo e no período da estiagem, a principal preocupação era os alimentos que vinham em sacos de algodão de outros estados para serem distribuídos entre as famílias mais carentes. Não aparecia trabalho e nem renda. Foi um tempo de adversidades, de contratempos e de contrapontos, mas também de invencionice, maquinação e imaginação.
Os estojos não eram tão coloridos, adornados ou plastificados como os de hoje. Eram confeccionados por cada um de nós.
Meu pai trazia da bodega de Seu João caixas vazias de linhas de costurar e nós colávamos suas laterais e as cobríamos com tecido ou papel para embrulhar presentes. Além desse utilizávamos o famoso papel de embrulho para servir como forro, pois pregávamos sobre ele fotos de artistas de novelas, de revistas em quadrinhos ou de propagandas. A televisão ainda não fazia parte “como membro da família” em todas as casas, porque era um eletrodoméstico destinado às classes mais favorecidas. Hoje esse meio de comunicação é quase uma pessoa, pois a partir do momento em que o aparelho começa a funcionar, a atenção é voltada, exclusivamente para ele. É o momento de êxtase total, de egocentrismo (da televisão,é claro!).
Cada estojo daquele produzido com carinho e amor era sempre o melhor! Acontecia uma espécie de Superação e, ao mesmo tempo, de Conquista. Nós sentíamos uma necessidade de competir sem a selvageria dos tempos modernos, cuja busca por um lugar no pódio nos remete a um canibalismo inconsciente.
Tão bons ficavam eles que todos da escola queriam imitá-los nos mínimos detalhes. Que saudade eu sinto daquelas caixinhas emparelhadas, coladas nas extremidades com goma arábica e que guardavam lápis, borracha, régua, caneta, sentimentos, subjetividades... Guardavam momentos especiais e amigos do mesmo quilate, bem como os pingos das gotas fugidias, de dias de chuva que, esporadicamente, chegavam e molhavam o seu interior e era aí, nesse meio tom, na mesma caixinha de linha que morava, secretamente, a nossa alma úmida de infância.

Maria Maria